Anges Modas

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A moda que os anjos vestem

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A refundação do Estado


1- O Estado em face da globalização

No limiar do terceiro milênio, exige-se a compreensão dos novos desafios constitucionais, em seus processos de internacionalização, globalização e regionalização, mediante a percepção das permanências constitucionais e das interações regulatórias dinamizadas por normas constitucionalmente estruturantes.

Identifica-se no atual momento constitucional a disseminação de concepções neoliberais que corroem as diversificadas sociedades, subordinando-as a lex mercatoria.

A globalização caracteriza-se como processo policêntrico, ao concentrar vários domínios de atividade, dentre os quais a economia, a política, a tecnologia, a militar, a cultural e a ambiental. Revela-se, assim, a contradição entre a ampliação de espaços econômicos e sociais, necessários ao desenvolvimento da existência humana, que extrapolam as fronteiras estatais, e a redução drástica dos espaços políticos, evidenciada na legitimação política do sistema, na qual se prioriza a eficiência em detrimento do princípio democrático.

O discurso da global governance torna-se sedutor, ao perceber o mundo como fábula, recortada por metáforas e fantasias, dentre elas a multiplicação de objetos e serviços, acessíveis a todos.

Tais fantasias alimentam o imaginário coletivo. As bases materiais dessa mitificação situam-se na realidade da tecnologia atual em que a técnica apresenta-se ao cidadão comum como uma mescla de mistério e banalidade.

Quando o sistema político dominante incorpora o sistema técnico contemporâneo, traz consigo seu imaginário, carregado de formas de relações econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata.

Além disso, proclama-se o fim das ideologias e da história, restando uma única alternativa, dotada de forças irresistíveis e irreversíveis, apta a governar a história, dominada pela economia de mercado: a global governance.

Não obstante, o Estado constitucional, mesmo debilitado pelo discurso da globalização, permanece ponto de referência e marco de resistência obrigatório no qual se sedimentam os parâmetros reguladores da vida social e se definem e se expressam democraticamente os princípios norteadores de uma comunidade política, ou seja, o discurso da razão política.

Daí a tensão permanente entre as fabulações da globalização econômica, com sua lógica de cálculo de custos e benefícios, em discurso sobre a razão instrumental, e os fundamentos democráticos do Estado constitucional, com sua lógica de legitimidade política, em discurso sobre a razão política.

As diversificadas realidades estatais, no limiar do novo milênio, impõem a metamorfose do Estado, compreendidas como a forma de racionalização e generalização do político nas complexas sociedades modernas.

As transformações, ocorridas no âmbito dos Estados ocidentais no decorrer do século XX refletem uma crise de racionalidade, que diluiu a sociedade civil, ao estabelecer um aparato estatal autoritário e incompetente para satisfazer as demandas das sociedades de massas.

HABERMAS verifica a crescente complexidade das tarefas estatais: no primeiro momento, o Estado se especializou na clássica tarefa de preservar a ordem; depois, na função da justa distribuição das compensações sociais; e, no outro, finalmente, na administração das situações coletivamente perigosas (kollektiver Gefährdungslagen) (a: et seq.).

Desde o ocaso do século XX, novos paradigmas delineiam os esquemas de representação da pós-modernidade, caracterizados pela fragmentação, multipolarização, multiorganização e descentralização da organização política estatal, através de um conjunto de sistemas autônomos, auto-organizados e reciprocamente interferentes.

Percebe-se que, paralelamente ao Estado, existem difusos pela comunidade, entes autônomos territoriais (municípios e regiões), e institucionais, vinculados à sociedade civil, tais como ordens profissionais, associações e ONGs, movimentos corporativistas e movimentos sociais.

Daí, as atividades típicas estatais retraíram-se de tal forma que ocorreu a perda do centro do Estado, concebido como organização unitária e centralizada, e a existência de um ‘direito sem Estado’, i.e., de modos de regulação como contratos, mediações e negociações constitutivos da denominada ‘reserva normativa da sociedade civil’.

Não obstante, o Estado não deve e não pode desaparecer, sendo essencial a discussão de seus fundamentos democráticos e determinação de seu papel em relação à globalização, preservando-se a identidade política, econômica e cultural de cada sociedade que legitima seu aparato estatal.

2 - A GÊNESE E OS EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO

Desde as fantasias do doutrinarismo tecnocrático, perpassando pelos discursos do fim das ideologias e da história, testemunha-se a pretensão de sujeição dos postulados da razão política às novas exigências da razão tecnocrática e instrumental.

Deve-se, entretanto, mensurar o impacto que a globalização e a global governance provocaram nos sistemas democráticos tradicionais. Na década de, em plena crise do Welfare State, no âmbito interno estatal, houve o primeiro impacto, quando se renegou o discurso keynesiano, substituído pela ordem neoliberalismo, com sua fábula: a ‘Constituição da liberdade’.

Simultaneamente, no plano internacional, questionou-se a habilidade e eficiência do sistema interestatal vigente para solucionar seus crônicos problemas. Na nova fábula, o conceito de democracia, como método pelo qual se determina o que é válido, como lei, encontrou seu fundamento na economia de mercado, renegando a soberania popular.

Com o Consenso de Washington, sugeriu-se receituário da global governance, com medidas destinadas a debelar a inflação e estabilizar os sistemas econômicos dos Estados nacionais, sob o monitoramento do FMI e assessoramento financeiro do Banco Mundial.

Restringiu-se, então, a atuação estatal, praticamente extinguindo suas funções reguladoras, com o intuito de liberar a economia das ingerências do poder público e equilibrar o orçamento interno dos Estados.

A economia de mercado passou a funcionar em redes, para atender a liberdade total de deslocamento de capitais, em escala mundial, servindo-se da proliferação de inovações financeiras e tecnológicas.

Cada elemento do processo de produção procurou situar-se em espaços privados, em qualquer lugar do planeta, escolhido em função de custos de produção, das desregulamentações locais e/ou ausência ou pouca probabilidade de riscos de investimentos.

O policentrismo, peculiar à globalização, norteou a função desses vários subsistemas autônomos, articulados com a política econômica mundial e, em rede, com outros subsistemas parciais pertinentes.

Houve, no entanto, certa precipitação na adoção de medidas neoliberais em economias assimétricas, bem como não se planejou desenvolvimento equilibrado e sustentável de cada Estado, em consonância com suas identidades.

Por outro prisma, acentuou-se a centralidade do consumo, manifesta na interferência das relações de consumo no cotidiano do cidadão comum.

Entretanto, com a adoção do receituário do Consenso de Washington, alteraram-se as relações de trabalho, que se tornaram instáveis, resultando em expansão do desemprego e na queda do salário médio do trabalhador.

Delineou-se, por conseguinte, uma situação contraditória da fábula da multiplicação de objetos e serviços, cuja acessibilidade se demonstrou, desse modo, improvável, e, paralelamente, a oferta dos próprios objetos, de consumos tradicionais, foi reduzida para parcela significativa da população.

Para MILTON SANTOS, a globalização em si pode ser considerada um retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade, do qual é emblemático o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado constitucional, gerando, em vez de abundância e riqueza, autêntica fábrica de perversidades.

O próprio Conselho Nacional de Inteligência (CNI), órgão dos Estados Unidos da América, traça um quadro trágico para as conseqüências da globalização:

Sua evolução será agitada, marcada pela volatilidade financeira crônica e uma brecha econômica cada vez mais ampla (...). A estagnação econômica, a instabilidade política e a alienação cultural fomentarão os extremismos étnicos, ideológicos e religiosos, acompanhados de distúrbios e violência.

É como se o feitiço virasse contra o feiticeiro”.

Do processo de globalização, criou-se um mundo peculiar de fabulações, que se aproveitou do alargamento dos espaços sociais e econômicos, para consagrar o discurso único, fundado em dois pilares básicos:

a) Informação – ao se disseminar imagens e imaginário, enfatiza-se o mito da formação da aldeia global ou a difusão instantânea das notícias.

Verifica-se, ainda, uma relação umbilical entre o mundo da produção destas e o mundo de produção das coisas e das normas;

b) Economia de mercado – ao se produzir economização e monitorização da vida pessoal, propagam-se o mito do mercado mundial competitivo, com sua global governance, dotado de mecanismos de produção normativa instrumentais.

Nesse processo de globalização, há, pois, a pretensão de tudo transformar-se em mercado, inclusive o próprio aparelho ideológico estatal e os comportamentos políticos.

Os franceses denominam esse processo de aniquilamento das relações sociais e políticas no âmbito estatal de mondialisation fractale, dado o caráter migratório, volátil, fragmentário e irregular dos mercados mundiais.

HABERMAS, em sua Teoria da Ação Comunicativa, problematiza, de forma instigante, o fenômeno da globalização econômica e a racionalidade instrumental que condiciona suas atuações. Em sua reflexão, submetem-se a essa racionalidade, em definitivo, o mundo da sociedade civil e da economia, e o mundo da política e do Estado.

A solução para a questão, suscitada por HABERMAS, dá-se, através da contraposição, entre a racionalidade instrumental e as esferas por ela definitivamente dominadas, cognominadas como racionalidade comunicacional, situadas no mundo da vida.

O mundo da vida consiste no resgate do último reduto de liberdade no qual os cidadãos interagem e compartilham de sua existência cotidiana e podem encontrar, ainda, espaços para o consenso fundado em uma comunicação ou em uma deliberação, de forma livre de coação externa.

Autor: Mário Lúcio Quintão

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